
A Ilíada e a Odisseia, as duas epopeias geralmente atribuídas a Homero, marcaram muitíssimo a minha vida, desde quando as li (em condensações ou reapresentações atualizadas, obviamente), ainda menino aluno do curso ginasial, lá por 1965 ou 66.
As duas narrativas me apaixonaram, literalmente. Pus-me a estudar a Grécia antiga, depois Roma e os relatos bíblicos do Velho Testamento. Na época, eu participava de um programa de rádio, chamado "Mate esta!", que versava assuntos culturais dos mais variados. Eu era o mais novo participante e cheguei a obter um honroso segundo lugar na classificação geral. Cada participante tinha uma "especialidade"; a minha era mitologia greco-romana!
Em cinema, o que mais me atraía eram os filmes históricos sobre a Antiguidade. Eu ficava, entretanto, furioso porque via que, frequentemente, os filmes modificavam os fatos que eu já tinha lido, alteravam-nos à vontade para favorecer um enredo hollywoodiano. Eu era muito criança, mas acho que foi naquela fase que começou meu senso crítico que só aumentou com a idade...
É claro que, naquela jovem idade, eu não tinha condições de compreender, nem de longe, todo o alcance filosófico das duas epopeias de Homero. Isso, só com a idade fui alcançando compreender. Bem mais tarde, tomando contato com os textos originais de Homero (em traduções, claro!), lendo outros livros que me marcaram muito (especialmente "A cidade antiga", de Fustel de Coulanges) e vendo - ou revendo - filmes novos ou antigos sobre aquela época (Tróia, Alexandre, Os 300 de Esparta etc.) é que me dou conta de como, sem sentir, aquelas leituras da infância me marcaram.
De fato, compreendo agora que a Ilíada e a Odisseia significaram muito na minha vida, como podem significar na vida de quaisquer outras pessoas.
A Ilíada, muito mais do que a luta entre gregos e troianos, uma guerra pelo predomínio dos mares e do comércio naquela região, muito mais do que uma disputa pela posse de Helena, muito mais do que a disputa entre as deusas do Olimpo para saber qual era a mais bela e merecia ganhar o pomo de ouro, constitui uma parábola muito perfeita de todas as lutas humanas entre povos e nações, seja por que motivo forem: políticos, econômicos, raciais, religiosos, culturais etc.
Por outro lado, em torno do confronto entre gregos e troianos, uma riqueza estonteante de tipos humanos se revela na Ilíada. Homero era um psicólogo extraordinário, a a descrição, ou melhor, a caracterização psicológica que faz de numerosos personagens é de uma riqueza e de uma força extraordinárias. O heroico, mas impulsivo, Aquiles e o astuto Ulisses constituem, sem dúvida, os dois principais personagens da epopeia, se a analisarmos deste ponto de vista específico, o da psicologia. Aquiles foi o modelo humano que inspirou Esparta, Ulisses era mais irado em Atenas. Na bipolaridade irativa Aquiles-Ulisses se forjou o caráter grego, como na bipolaridade política e cultural Esparte-Atenas se forjaria a própria civilização grega.
Páris representa, no drama, o papel do homem de caráter fraco, que não hesitou levar seu povo à ruína pelo amor de uma mulher, traiçoeiramente roubada a seu marido. É verdade que se amavam, mas não tinham ambos o direito de o fazer com as consequências que seu amor trazia. Já o troiano Heitor representa o nobre e leal cavaleiro, reto, sacrificado, com senso de dever em relação aos deuses, à pátria, ao seu povo e a si mesmo. Pátroclo, o amigo fiel, o velho Nestor, o fracassado Laaconte, o velhaco e ambicioso Agamenon, o pobre Aastinax (de quem eu, menino, tinha uma pena imensa...) e tantos outros, são modelos humanos de vícios ou virtudes. Na análise irativa ou condenatória desses personagens, inúmeras pessoas, ao longo das gerações, formaram seu caráter.
Não posso omitir, naturalmente, Eneias, o sobrevivente que levou o espírito de Tróia para o Lácio e cujos descendentes, séculos depois, haveriam de retornar para dominar a Grécia, numa formidável revanche histórica. As epopeias de Homero, por sinal, não podem deixar de ser completadas pela Eneida, o grande poema épico sobre as origens de Roma, escrita por Virgílio nos últimos anos do século I a.C.
E a Odisseia? Falaremos dela na próxima semana... se o mundo não acabar antes!
Armando Alexandre dos Santos é doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Piracicabana de Letras e do IHGP.